QUILOMBOS Para Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez

Em comemoração ao Novembro Negro, mais especificamente o 20 de novembro - dia da consciência negra compartilho a poesia de José Carlos Limeira intitulada Quilombos que é dedicada a Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento


Memórias I
Queria ver você negro
Negro queria te ver
Se Palmares ainda vivesse
Em Palmares queria viver.
O gosto da liberdade sentido, cravado no peito
Correr, sentir os campos ter a vida
Angola Janga
Terra de negros livres
Ali toda vida
Toda raça, raiva, vontade
África
África (tão subitamente roubada)
Sonhos (tão subitamente assassinados)
Liberdade (tão subitamente trocada pela escravidão)

Memórias II
Negro correndo livre
Colhendo, plantando por lá
Se Palmares ainda vivesse
Em Palmares queria ficar.
O ódio do feitor é pegajoso, fecundo
Ele pode emprenhar até mentes mais estéreis
Com seu pênis de chicote.
Os feitores esparramam se gozo
Nas costas dos malungos
Guinés, Ardras, Congos, Agomés, Minas, Cafres
E o sangue jorrou com tanta força
Que em Angola, fui Nagô, irmão de Haussá
Jeje, Tapa e Senty.
O cheiro nauseante do esperma da tortura
Fez com que ficássemos juntos, usando nosso ódio mais comum.

Sonhos I
O rei de Portugal
Mandou ao meu povo matar
Se Palmares ainda vivesse
Em Palmares queria estar
Cumbe na Paraíba, Alagoas, Macaco e Subupira
Mangueira, São Carlos, Portela na Avenida
São quantos?
Ontem morri em Andalaquituche, Tabocas, Amaro, Acotirene
Hoje no Juramento, Borel, Turano, Salgueiro, Curuzu...
Morro subindo morro
Rolo ladeira cada dia com decidido ar de defunto novo
Quando desce a noite, vejo em cada fundo de prato o reflexo da luz da vela
E sonhos pra devorar

Sonhos II
Te vejo meu povo feliz
Teu sonho querendo sentir
Se Palmares ainda vivesse
Pra Palmares teria que ir
Você já pensou se Domingos Jorge Velho e sua malta
Não houvessem tido tanta sorte?
Já pensou naquele país da serra da Barriga?
Sei que talvez não,
É difícil imaginar uma terra
Onde não fosse possível ver
Uma negra Ter que mostrar a bunda
Abrir as coxas, tirar das entranhas o pão de cada dia
Onde não fosse possível ver
Criancinhas
De dez, oito, seis anos
Voltando às quatro da manhã
Depois de vender chicletes e o último resquício de dignidade
Nos cruzamentos da cidade.

Notícias
Por menos que conte a história
Não te esqueço meu povo
Se Palmares não vive mais
Faremos Palmares de novo
Ontem um distinto senhor me disse:
- Filho não pense nessas coisas
(naturalmente mandei-o à merda)

Insônias
Saudades das Tuas noites
Fogueiras que eu não vi
Palmares, Estado Negro...
(vivo pensando em ti)
Como não estar
Na podridão do Mangue
Nas ratazanas da zona
Na multidão de bucetas infectas
Como não estar no barulho da britadeira
Na comida azeda, na marmita fria
Como não estar na fome do meu filho
Já nascido com jeito de morte
Como não estar no lio das madames
No cheiro da gordura da pia
Nas bostas dos barões boiando na latrina
Como não estar no trem lotado, no barraco caindo
No camburão, na porrada nos dentes
No lodo. Do fundo de cada cela
Como, se tudo isso sou eu?
Quilombos, meus sonhos
Sofro de uma insônia eterna de viver vocês
Vivo da certeza de renascê-los amanhã,
Se um distinto senhor vier me dizer
Para não pensar nessas coisas
Vou Ter de matá-lo, confesso:
com um certo prazer.
Por menos que conte a história
Não te esqueço meu povo
Se Palmares não vive mais
Faremos Palmares de novo




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