Namíbia, Não! Um texto teatral de ficção futurística


“Em uma manhã do ano de 2020, André chega em casa após uma noite de farra, e anuncia ao primo Antônio que foi assinada em plena madrugada, uma Medida Provisória do Governo Brasileiro determinando que todos os cidadãos de “melanina acentuada” do País deverão ser capturados nas ruas, e enviados de volta a um país da África, como forma de Reparação Social.” (Sinopse do livro)

Li pela primeira vez algo referente a peça pelas redes sociais, vi que já tinham recebido prêmios e tudo mais, fiquei super entusiasmada, acabei empolgando a todos aqui em casa. Um dia foi anunciado um período de apresentação aqui em Salvador com ingressos populares, fomos todas assistir à peça.

Após a apresentação eu precisava procurar mais sobre a peça, descobri a existência do livro, o escritor era Aldri Anunciação que na peça interpreta o primo Antônio, soube também que era uma das peças que compõe uma trilogia teatral, algo novo pra mim que estava acostumada a trilogias literárias e cinematográficas, o tempo passou e não tive condições de comprar o livro, mas tudo bem, fazer o que!

Então foi lançada a segunda peça - O campo de batalha, e também estiveram um período aqui em Salvador, com ingresso a preço popular, dessa vez apenas painho me acompanhou. No dia fomos ao Vila Velha e adivinhaaaa o que aconteceu? teve queda de energia, isso mesmo, o Vila Velha ao breu; Aldri Anunciação foi conversar com as (os) espectadoras (es) sobre a impossibilidade de realizar a peça naquele dia e deu duas opções: 1- pegar o dinheiro de volta ou 2- ir outro dia para assistir à peça e ganhar o livro Namíbia, Não!. Mesmo com essa notícia todas (os) continuavam cabisbaixas (os), somente eu fiquei tão feliz que dei um grito e bati palmas, algumas/alguns me olharam assustadas (os), painho me cutucou para ficar quieta, mas só eu sentia a felicidade de ter a garantia que ganharia o livro que já queria a tanto ler.

Sobre a peça - livro:

Logo no inicio Antônio chama a atenção por seu jeito altivo e de superioridade, não apenas ao seu primo André, mas até mesmo a você espectador e leitor. Antônio iria começar, não fosse a interrupção causada pela medida provisória, um curso preparatório para o concurso de diplomata do Itamaraty, mas não era qualquer curso. Foi realizado um concurso e os aprovados iriam fazer um curso preparatório para o concurso de diplomata de Itamaraty e ainda teria a especificidade de que este curso era apenas para pessoas de melanina acentuada.

Em Antônio percebemos como a ideologia da meritocracia pode ser encantadora, e até ter um cheiro doce inebriante. Ser o primeiro, ouvir que era merecedor, que se esforçou, batalhou dentre tantos e por isso conseguiu, pode enaltecer o ego dos que não percebem que esta nada mais é do que uma estratégia de um sistema que se estrutura no racismo e exclui todo dia o povo negro. Em algumas situações eles (aqui leia-se o opressor) não conseguem segurar todas (os) a margem, existem aquelas (es) que por inúmeras circunstâncias saem um pouco desta margem, e aí o discurso meritocrático logo aparece dizendo “Olha como você é diferente dos que ficaram, você é melhor, é quase igual a gente, mas mesmo assim não queremos você aqui no centro conosco, não ande muito ok!?”

Os primos ficam presos dentro de casa e 'protegidos', pois segundo André ninguém pode invadir o apartamento senão estará infringindo a Lei de Invasão de Domicílio, Artigo 150 do Código Penal. O período que eles ficam juntos é permeado de inúmeros diálogos profundos, inquietantes, e perturbadores. Eles percebem, cada um ao seu modo, que tudo que eles conseguiram até aquele momento não existe mais, não adiantou Antônio ter sido aprovado, ter títulos ou estar em uma vantajosa posição social, ele agora não passa de um corpo negro que precisa retornar a África assim como seu primo.

André demostra que sempre percebeu isso, que sempre foi apenas um corpo negro e acredita que a melhor solução realmente é voltar a África, sendo assim, durante a trama ele tenta convencer o primo do mesmo. Falas de André: “Porque aqui, primo, não tem mais jeito. Aqui somos nada.”, “Nós éramos os únicos de melanina acentuada na escola.... Você não estranhava aquilo.... Eu queria ir embora! Eu quero ir embora.”

Antônio reluta o tempo todo, não aceita que o seu lugar possa ser na África, acredita veementemente que tem uma boa situação no Brasil. Fala de Antônio: “Escuta André... Aqui no Brasil eu sou benquisto, sim!”. Porém com o desenrolar da trama ele passa a olhar pra dentro, pra dentro desse corpo negro e perceber que carrega muito mais do que imagina, ele percebe toda a ancestralidade que o corpo negro carrega, toda a força para viver, lutar e resistir que o corpo negro carrega e por fim ele aceita, apesar de que não era uma escolha, ir para a África, mas na verdade ele não apenas aceitou ir para outro continente, ele aceitou ser Negro.


SPOILER


“Socióloga (off) – (megafone): Foi uma morte sugestionada. Ele acreditou tanto na possibilidade da ausência de ar, que realmente não conseguiu mais respirar [...]”.

Esta é a fala da socióloga que comunica a Antônio a morte de André. A opressão é tão perversa e estratégica que quando não mata a execução consegue matar de uma forma que deixa aparentar que eles (opressor) não são responsáveis, adoece mentalmente os corpos negros, adocem fisicamente os corpos negros e a morte torna-se responsabilidade do próprio que morreu. Aqui vale ressaltar que a maior população que se encontro no cárcere privado é negra, que a maior população que tem adoecimentos de saúde mental e se encontra em manicômios, hospícios, hospital psiquiátrico e CAPS é negra. (Manicômio e CAPS são dois modelos de atenção a saúde mental completamente diferentes e aqui deixo bem enegrecido que minha posição é a favor do modelo de atenção do CAPS). 

Além dos temas elencados neste texto a obra aborda muitos outros que são tão importantes quanto, dentre eles o colorismo e o posicionamento da grande mídia que corrobora para a dominação do Estado. A peça e o livro são maravilhosos, no livro tem cenas a mais do que na peça, então se você puder é melhor comprar o livro.


Se você, assim como eu, nunca tinha ouvido falar sobre esse país continue a ler o texto, deixo aqui algumas informações. 

O nome do país é uma referência ao Deserto do Namibe (ou Deserto da Namíbia), região árida que cobre boa parte de seu território. A Namíbia foi colonizada pela Alemanha e, posteriormente, pela África do Sul, só obteve a independência total em 1990, o que faz dela uma das nações mais jovens do planeta. É um dos maiores produtores de diamantes e urânio do mundo. As religiões predominantes são: cristianismo 90,9%, crenças tradicionais 6,3%, sem religião 1,8%, outras 1% .

(Fico sempre me perguntando sobre essa denominação Crenças Populares, é perceptível que a todo tempo caracterizam como folclore tudo que se refere ou que seja cultura africana e afro-brasileira).

População residente em área urbana: 37,38%. População residente em área rural: 62,62%. População subnutrida: 19%. Esperança de vida ao nascer: 51,9 anos. Domicílios com acesso à água potável: 93%. Domicílios com acesso à rede sanitária: 35%. Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): 0,606 (médio).


(Todos esses dados foram retirados de sites comuns, procurei em sites acadêmicos e não encontrei nada).



REFERÊNCIAS:
BRASIL. MJ divulga novo relatório sobre população carcerária brasileira. Disponível em:<http://www.justica.gov.br/radio/mj-divulga-novo-relatorio-sobre-populacao-carceraria-brasileira>

ABRASCO. Há 726.712 pessoas presas no Brasil. Disponível em:<https://www.abrasco.org.br/site/noticias/saude-da-populacao/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/32422/>

MOURA, Gabriela. Um diálogo entre negritude e loucura. Disponível em:<https://medium.com/@metaforica_gabi/um-di%C3%A1logo-entre-negritude-e-loucura-ab3c7b40e480>

15 Fatos Curiosos Sobre a Namíbia e Seus Desertos. Disponível em:<http://www.maiscuriosidade.com.br/15-fatos-curiosos-sobre-a-namibia-e-seus-desertos/>

Conheça a cultura e curiosidades sobre a Namíbia, na África. Disponível em:<https://www.adventureclub.com.br/blog/curiosidades/conheca-a-cultura-e-curiosidades-sobre-a-namibia-na-africa/>

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