Quando me descobri uma leitora negra


A biblioteca pra mim não era apenas um lugar que reunia vários livros, era o lugar que poderia me proteger dos olhares, dos risos, das zombarias, da opressão, do racismo, do machismo. Estudando em uma escola primária particular, onde era uma das raras estudantes negras, de cabelo crespo e naquela época gorda, a biblioteca acabou sendo a única saída possível na mente de uma criança. Lá encontrei um outro mundo, mas não tão diferente do nosso mundo real.

Lembro que de literatura infantil li muitas escritoras (aqui deve ressaltar que mulher na literatura é mais aceita na literatura infanto-juvenil, porém este é tópico pra outro debate, aguardem!), as que me marcaram foram Ruth Rocha e Adriana Falcão.  

Na adolescência já surgiram os escritores, me apaixonei por Júlio Verne, José de Alencar, Machado de Assis, Jorge Amado, passei esse período todo com esses escritores, mergulhei cada vez mais na literatura nacional, me encantava.

No ensino médio muitas professoras colaboraram para que eu pudesse olhar o mundo com um olhar mais crítico, não acreditar sempre no que tá escrito. O hábito da leitura já suscita muitos questionamentos e uma mente inquietante, com o auxílio das minhas professoras que tenho um tamanho carinho, em especial a professora de história Denise, comecei a me indagar o porquê só estava lendo homens, no entanto mesmo assim continuei a lê-los.

Então comecei a me preparar pro vestibular e li com o maior prazer todos os livros listados pela UNEB e UFBA. Na lista da UNEB tinha o livro de Lygia Fagundes Telles – As meninas, pronto! foi aí que começou a minha saga por escritoras. Nas minhas pesquisas achei nada mais nada menos que Clarice Lispector, a primeira obra desta autora que li foi A hora da estrela, achei maravilhoso fui atrás de outras obras (gostaria de pedir que se você é fã de Clarice, por favor, não fique de mal comigo) e não consegui, não consegui terminar nenhum livro dela, não ia, algo travava, parava, não concordava com muito que era dito nas suas obras, juro que tentei, mas não deu, infelizmente não gosto de Clarice Lispector.

Durante todo esse tempo continuava lendo os escritores, fui percebendo que a maioria eram brancos, e passei a discordar de ideias colocadas nas obras, a discordar do posicionamento que estes escritores tiveram. Talvez muitos não saibam, mas José de Alencar era a favor do sistema escravocrata, Júlio Verne era racista, fica evidente na sua obra - Cinco semanas em um balão.  Percebei que Machado de Assis era negro, mas idealizado e difundido como sendo branco, que Lima Barreto até hoje sofre com o forçado e estrutural apagamento de sua obra e vida.

Li algumas escritoras aqui, outras ali, mas nada grande coisa.

Em 2013 passo no vestibular e vou cursar fonoaudiologia na UNEB, e em 2016 pude participar de uma maravilhosa experiência, Vivências e Estágios na Realidade do SUS (VER-SUS), lá a metodologia usada conduzia para que fossem formados Núcleos de Base (NBs) e cada NB precisava ter seu nome e sua identidade. Uma das integrantes falou “porque não colocamos Carolina Maria de Jesus?!”, ela contou a história de Carolina e prontamente adorei, amei, já queria ler algum livro dela.

Ao voltar à rotina procurei sobre Carolina e decidi ler todas as obras dela, sendo assim votei a buscar sobre escritoras. Em uma rede social vi uma publicação do projeto Leia Mulheres, estavam convidando para um encontro que iria acontecer em Salvador, não sabia quem era a escritora escolhida pro debate, muito menos tinha lido a obra, mas mesmo assim fui.

Ao chegar me maravilhei pelo debate que foi produzido fortalecendo ainda mais minha busca por ler mulheres, encontrei outros clubes de leituras de mulheres na internet, que existiam em outros estados, até que encontrei o Leia Mulheres Negras, aí sim o portal do mundo mágico finalmente abriu e eu entrei.

Encontrei uma imensidão de escritoras negras, de mulheres que falavam de mim nas suas obras, sim! De mim, de minha mãe, de minha avó, de minha irmã. Foi amor à primeira vista e até hoje esse relacionamento vive.

Um novo grupo de leitura apareceu em Salvador - Lendo Mulheres Negras, ele é de uma força impactante, esse movimento e a perseverança das organizadoras é esplendido, muito obrigada por resistirem! 

Contudo ainda parecia que não tinha com quem eu comentar sobre os livros, sobre o que eles produziam, ficava tudo só pra mim e o tempo todo eu querendo gritar pro mundo dessa literatura, até que esse ano, com a ajuda de minha irmã, decidi compartilhar com vocês, as minhas opiniões sobre as (os) autoras (es), as obras, os eventos literários e tudo mais que se relacionar com a literatura negra. Vou compartilhar sobre a literatura produzida e vivida por mulheres negras e homens negros.

Sejam bem vindas (os)!

REFERÊNCIA:
TRINDADE, Joyce Nathália de Souza. José de Alencar e a escravidão: necessidade nacional e benfeitoria senhorial. Disponível em:<http://www2.unifesp.br/ciencias_sociais/dissertacoes-defendidas-versao-final/joyce-nathalia-de-souza-trindade>

Comentários

  1. Mana, eu adorei. Eu acho engraçado que a maioria das leitoras mulheres passam por isso, tenho um grupo no WhatsApp e no fim do ano sempre fazemos um balanço de quantas escritoras mulheres lemos no ano. Sempre é um número pequeno se comparado aos de homens, mulheres negras então é quase inexistente. Estamos tentando mudar isso é uma lenta caminhada mas chegaremos.
    PS: Vc leu a Clarice errado leia de novo. Kkkkkkkkkkkk tô brincando.
    PS2: quero mais dicas de autoras negras viu 😁

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