O olho mais azul - Uma história racial


“Nos Estados Unidos da década de 1940, garotas negras e pobres costumam ganhar de presente bonecas estampadas com o rosto da atriz mirim Dhirley Temple. A adolescente negra Claudia MacTeer abomina essa submissão ao olhar excludente da raça dominadora e dedica-se a desmembrar bonecas brancas com um ódio instintivo e autoprotetor. Mas sua frágil amiga Pecola Breedlove, filha de um negro alcoólatra e violento, reza para ter olhos azuis – um delirante e inconsciente desejo de redenção e ascensão social”. (Sinopse do livro)

No posfácio do livro Toni Morrison escreve que “[...]o ato de escrever o livro foi precisamente isto: expor publicamente uma confidencia privada”. Toni escancara pro mundo todo um segredo nosso, um segredo das meninas negras, e faz isso com todas as letras, com toda nitidez e enegrecimento possíveis.

Eu cresci rodeada pela religião cristã-evangélica, sendo assim, antes de dormir tinha que orar. A minha oração era bem simples, pedia pra Deus me deixar branca e com cabelo liso, eram as únicas coisas que pedia, quando eu acordava e percebia que Deus não tinha me atendido ficava com um enorme ódio de Deus, me questionava porque Ele não me atendia, será que eu era uma criança má? Fui crescendo e parando de solicitar tal desejo percebendo que Deus jamais me atenderia, então já que não tinha a ajuda do céu restava pedir ajuda aqui na Terra mesmo, e assim começou o uso da química, e outras coisas que as mulheres negras são submetidas a fazer.

Claudia e Frieda são irmãs, e amigas de Pecola, as únicas amigas dela (até a construção da amiga imaginária). As únicas que a enxergam como uma criança apesar de também sentirem pena e compaixão por ela. Pecola é a filha caçula de uma família tradicionalmente desestruturada. Vamos lá eu explico, a sua mãe Breedlove é empregada doméstica na casa de uma família de brancos, além de ser frequentadora de uma igreja; seu pai realiza trabalhos braçais, é alcoólatra e bate na esposa; seu irmão mais velho é conhecido por sempre estar fugindo de casa.

Essa é a família de Pecola, você já deve ter visto representações de uma família assim em algum filme, em alguma novela ou no seu próprio bairro. O que você não viu foi o que produziu e moldou cada personagem para que resultasse este tipo de família. O que você não viu foi como o sistema trabalhou direitinho para a construção desta família. Mas não pense que é culpa sua não ter visto isso, essa também é uma estratégia do sistema, ressaltando que este sistema é racista-patriarcal-lgbtfóbico-classista.

Este sistema produz um determinado tipo de ódio, um ódio direcionado para a população negra, um ódio que permeia dentro da própria população negra. Deste modo, ele faz você odiar, acusar, apontar, uma mãe que espanca a filha negra e cuida com muito carinho da filha branca da patroa; ele faz você odiar e querer a pena de morte para um pai que é alcoólatra, espanca a mulher e estupra a filha; ele faz você odiar, chamar de vagabundo e dizer “Bandido bom é bandido morto” para o irmão mais velho que ao invés de ajudar a mãe prefere fugir e se envolver com coisas ‘erradas’.

Claudia, a narradora da história, representa a visão da mulher negra que está quebrando os grilhões imposto por esse sistema, e passa a compreender o funcionamento do mesmo. Claudia é a mulher negra no constante processo de empoderamento. Claudia é a mulher negra que olha pro seu passado e começa a entender tudo que passou, que começa a entender que não teve acasos, mas acertos, acertos sempre pontuando a vitória pro opressor.

O tempo todo Claudia (Toni Morrison) conversa conosco, a população negra, esse é um livro pra gente. Contudo, todavia, entretanto, no entanto, é pra você também Cara Gente Branca e eu espero que você tenha entendido o recado do livro. Aqui uso as palavras de Angela Davis “Em uma sociedade racista, não basta não ser racista, tem que ser antirracista”. E concluo com a própria Toni “Porque eu sei (e o leitor não, pois tem que esperar a segunda sentença) que esta é uma história terrível sobre coisas que se preferia ignorar completamente”.

Trecho do livro, Claudia contando sobre a boneca que ela estraçalha– o presente de natal:

“Adultos, meninas mais velhas, lojas, revistas, jornais, vitrines – o mundo todo concordava que uma boneca de olhos azuis, cabelo amarelo e pele rosada era o que toda menina mais almejava. “Olha”, diziam, “ela é linda, e se você for ‘boazinha’ pode ganhar uma”. [...] Não conseguia gostar dela. Mas podia examiná-la para ver o que era que todo mundo dizia que era adorável. [...] Se algum adulto com o poder para atender os meus desejos me tivesse levado a sério e perguntado o que eu queria, ficaria sabendo que eu não queria ter nada, possuir nenhum objeto. [...] E eu teria respondido “Quero sentar no banquinho da cozinha da vovó, com o colo cheio de lilases, e ouvir o vovô tocar o violino dele só pra mim”.”

Ao ler o livro parava o tempo todo, não consegui fazer uma leitura sequenciada, precisava parar para me recuperar, refletir e sentir. Esse já é um dos meus livros favoritos, Toni Morrison já é uma das minhas escritoras favoritas e a cada dia leio mais livros dela. Escrever essa resenha foi difícil, mas vejo como necessária. Necessária porque é preciso falar sobre, para poder aliviar o peso que carregamos e também para ajudar no processo de empoderamento de outras meninas negras. Me reconheci em Pecola e em Claudia, ambas distintas, com reações diferentes a ideologia da branquitude, mas ambas ainda oprimidas.


SPOILER


Quando Pecola desponta com a ‘’’’loucura’’’’ ao construir uma amiga imaginária, Claudia apresenta uma fala inquietante, uma fala que já passa a condizer com a sua idade na história, pois ela já está mais velha. “Até seus devaneios usamos – para silenciar nossos próprios pesadelos”. Claudia reconhece a omissão e o abuso que os próprios negros praticam contra Pecola. Sua fala faz surgir o questionamento - O que nós estamos fazendo pelos nossos??

Não falei nem 1/3 de tudo que o livro retrata e também esta não é minha intenção, o que eu quero é que você possa ler o livro, espero ter despertado uma inquietação em você pra poder correr atrás desse livro. Eu peguei O olho mais azul na Biblioteca dos Barris 💛

Toni Morrison finaliza o posfácio dizendo “Com pouquíssimas exceções, a publicação inicial de O olho mais azul foi como a vida de Pecola: desprezada, trivializada, mas interpretada. E foram necessários vinte e cinco anos para ganhar para ela a publicação respeitosa que esta edição representa.” Isto foi escrito em novembro de 1993.



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