Cadernos Negros Os melhores poemas


“Com certeza, o grupo Quilombhoje, desde o seu surgimento, vem acumulando uma rica experiência não só de luta e de organização, mas sobretudo na abordagem poética da nossa realidade, com um engajamento profundo nas sendas da resistência e na perspectiva de um novo Brasil que não renegue suas origens, sua formação, sua africanidade.

Ao completar vinte anos de arte pura e heroica resistência, os Cadernos Negros vão adquirindo sua maioridade política e cultural, e consolidando uma experiência inédita no seio da militância negra e anti-racista” (Benedito Cintra - Prefácio)

O poema é um instrumento que possibilita inúmeras interpretações, o poema Quebranto de Cuti me levou a ter uma determinada forma de pensamento e ao mesmo tempo imaginei as outras possíveis leituras que poderia ter, um dia quando eu encontrar Cuti perguntarei o que ele realmente quis dizer com esse poema, enquanto isso não acontece vamos com a minha visão de leitora sobre o poema.

Muitas vezes nós negros passamos por momentos da auto sabotagem, o que quero dizer com isso, desde muito cedo somos ‘denegridos’, depreciados, somos menosprezados, somos constantes vítimas do racismo e dessa forma não é possível formar uma auto estima saudável que faça com que possamos gostar de nós mesmos, nos achar pessoas bonitas, inteligentes, capazes, isso reflete na nossa saúde mental e assim nós começamos a pensar que não conseguiremos uma vaga, um cargo ou algo que sonhamos, vejam bem, esse sentimento da auto sabotagem não surge em nós por nos mesmos, mas foi algo criado numa sociedade que se alicerça na branquitude denominado o que é o padrão, o certo, o melhor a fazer, pensar e viver.

Quando não temos uma rede de apoio ou não temos aceso a terapias isso faz com que essa auto sabotagem fique mais forte e sozinhas é muito difícil lutar contra isso, porque é uma batalha diária para lidar com isso e conseguir superar, é preciso ajuda de outras pessoas negras, de uma profissional de saúde, é preciso estudos sobre a temática negritude, é necessário entender essa lógica pela qual lutamos contra, entender o que nos oprime e também entender no que acreditamos e pautamos para nossas vidas.

Nisso infelizmente o que acontece é que nós negros por vezes acabamos reproduzindo também o racismo, em inúmeros momentos isso é algo inconsciente, pois fomos educados para isso, para vivermos em guerra entre os nossos para não conseguir acertar o verdadeiro alvo, enquanto nos matamos a branquitude vive em paz. Por isso o braço do Estado é uma polícia preta que mata gente preta, os vigias do banco são pretos que barram pretos na porta, os seguranças do shopping são pretos que barram meninos negros de circular naquele espaço. Entendermos que não são eles os nossos inimigos, mas sim quem os formou e forjou faz toda a diferença na militância e na vivência diária.

Ao perceber isso acho que o nosso modo de ver as situações muda, e com isso passamos a nos olhar de forma diferente. Eu tento a todo momento não me sabotar, acreditar em mim mesma, estou em terapia, leio e estudo sobre isso e graças a deusa tenho uma boa rede de apoio, isso tem me ajudado muitooo, as vezes tem aqueles momentos difíceis, mas logo penso que não estou sozinha neste espaço tempo em que vivemos e consigo me recompor para permanecer viva e em luta.

Então foi tudo isso que a poesia de Cuti me despertou, já relatei em outras resenhas como acho fantástica a escrita de Cuti, seja nos contos ou nas poesias, meu sonho de princesa de Wakanda é encontrar este maravilhoso escritor e tirar uma bela foto com ele kkkk

Quebranto

às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada

às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em  mim  mesmo
a não ser
pela porta de serviço

às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto

às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio

às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas

um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante

também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser

às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
sinto-me a miséria concebida como um eterno começo

fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.

às vezes!...

Outra poesia que me tocou foi - Teimosa presença de Lepê Correia, porque após esse processo de descolonização e desconstrução nós negros passamos a ter consciência de que somos a presença que teima, incomoda, insurge, reivindica, luta que não para e sempre está em movimento, aquela presença que representa e modifica outras pessoas e assim consegue modificar mesmo que aos poucos os espaços que ocupa.  

Teimosa presença

Eu continuo acreditando na luta
Não abro mão do meu falar onde quero
Não me calo ao insulto de ninguém
Eu sou um ser, uma pessoa como todos
Não sou um bicho, um caso raro
ou coisa estranha
Sou a resposta, a controvérsia, a dedução
A porta aberta onde entram discussões
Sou a serpente venenosa: bote pronto
Eu sou a luta, sou a fala, o bate-pronto
Eu sou o chute na canela do safado
Eu sou um negro pelas ruas do país.



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