Cadernos Negros Volume 22 Contos Afro-Brasileiros

“Cadernos Negros produz e logo existe. É uma série que desmistifica a imagem do afro-brasileiro dependente da mão do outro para escrever a sua própria história. Navegando esses sentimentos íntimos, essas vozes de resgate e de valorização situam o afro-brasileiro no plano humano ao correr de vinte e dois anos. 

Por mais que o discurso dominante continue a negar os valores, a indenidade individual e cultural de um povo, o impulso regenerativo que percorre estes contos, pelo seu humor, seu lirismo, suas verdades, seu simbolismo, enfim, sua dramaticidade, é um convite a todos: um mundo em que nos lemos, nos ouvimos, nos sentimos e nos descobrimos.


Nestes diálogos com nós mesmos e com os outros reside a nossa memória, o espírito revitalizador da nossa existência e a nossa confiança no futuro.


Ler os Cadernos é participar do batuque dos guerreiros modernos.” (Niyi Afolabi - Orelha do livro)

Nessa resenha quero apresentar a vocês a escritora Lia Vieira, vou apresenta-la da melhor forma possível, falando sobre sua escrita, nesse volume só tem 1 conto de sua autoria, mas foi o conto que mais me chamou a atenção e me encantou, isso porque ela falou de temas que me despertam interesse de uma forma muito linda.

O título do conto é Rosa da Farinha, é contado a história de uma senhora de idade, Dona Rosa, e de sua filha. A narradora, neta de Dona Rosa, não aparece na história, mas deixa marcado em determinado momento que ela é uma das pessoas que se deleita ao ouvir as histórias que sua avó conta e valoriza e muito a vida e a herança da tradição oral.

Dona Rosa é daquelas senhoras do interior considerada o ponto de referência, aquela que o povo busca para pedir conselho, ajuda, abrigo, e ao passar do tempo torna-se a anciã respeitada e consagrada pelo povo da região, é daquelas lutadoras que resiste na sua terra, não cede ao poder da agropecuária, agronegócio, ao poder capitalista e a má distribuição de terra, Dona Rosa nada mais é do que a mulher da roça e do campo que luta pela reforma agrária, mas não tem noção de que sua luta tem essa denominação, é aquela mulher feminista que nem sabe que feminismo existe.

“Totalmente consumida pelo ardor político, sentia-se à vontade onde quer que estivesse. É como se sua casa, a de nº 179 do caminho da Cavieira, fosse o local ideal para receber seus ilustres visitantes de toda parte.”

A luta pela terra é algo que mobiliza muitos movimentos, o MST é o que tem maior destaque, se você não conhece precisa urgentemente conhecer sua história e luta, deixar de acreditar no que a grande mídia diz ao perpetuar o ódio sobre este movimento. Felizmente participei do VER-SUS (Vivência e Estágio na Realidade do Sistema Único de Saúde) que tem como proposta imersão na rede do SUS, fomos para Teixeira de Freitas e lá ficamos hospedados na escola do MST desta região, além de conhecermos o assentamento e os assentados. Já tinha passado por uma mudança de pensamento sobre o MST, e essa vivência me fez ficar ainda mais feliz e acreditada nessa luta.

O mais bonito na história de Rosa é que existe a nitidez da continuidade de sua luta, pois a narradora explica que uma de suas tias segue os mesmos passos de sua avó, eu vejo esse fato mais como uma metáfora,  é como se a escritora nos dissesse que mesmo não vendo a completa mudança durante o tempo de vida podemos ter a certeza de que a luta não cessará, que a semente em outras pessoas foi plantada, o exemplo está posto e outras pessoas darão continuidade a luta que também não começou no nosso tempo, vem bem de antes da gente.

A história toda é de um encantamento por completo, as palavras utilizadas dão toda a doçura e suavidade ao conto, uma história de assunto pesado que dificilmente vemos sendo contada em literatura, mas que a escritora descreveu lindamente. Vale a pena conhecer não apenas este conto, mas toda a obra desta escritora.

"Um dia hei de ter tempo de tomar para mim todo o tempo que me apetecer, e, neste dia, todas as histórias, vivências e pressentidos de Vó Rosa e dos parentes vão incorporar-se à minha vida. Tal é o poder da herança-memória. A avó de minha infância existe mais porque eu tive tempo de observá-la, porque ela passou a existir em mim. É dessa fusão de tempos perdidos que desejo fazer o meu tempo; essa colheita de tempos fugazes.

Possa eu viver ainda, porque há em mim tanto que não foi visto, concedam-me a estação das contemplações e mesmo se os tratores apagarem a terra ou as divisas do território, peço a sobrevivência remanescente da identidade de nós outros, pois será assim meu corpo, decomposto e renascido."

Lia Vieira, pseudônimo de Eliana Vieira, tem seus escritos, poema e contos, publicados em muitos dos volumes dos Cadernos Negros, além de ter sua produção de obras individuais, são eles: “Eu, mulher” – mural de poesias (1990), “Chica da Silva – a mulher que inventou o mar” (2001) e “Só as mulheres sangram”. Tem graduação em Economia, Turismo e Letras.





Referências:

RISO, Ricardo. Lia Vieira – Só as mulheres sangram por Ricardo Riso.  https://www.geledes.org.br/lia-vieira-so-as-mulheres-sangram-por-ricardo-riso/

Dados Bibliográficos. http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/563-lia-vieira

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Literatura Infantil: 5 escritores negros baianos

Literatura negra erótica

Brincando de antigamente