Ponciá Vivêncio - A escrita da memória
“Ponciá Vivêncio é um romance que convida
a leitora a conhecer a protagonista pelos sentidos. Revela cheiros, sabores,
paisagens e a percepção da menina que escuta tudo e todos, olha, vê, sente e se
emociona com o arco-íris, com as comidas, com o cheiro do café fresco e das
broas de fubá e que trabalha o barro, modelando objetos de argila (como a
figura do avô)” (Maria Barbosa - Prefácio)
Não sei explicar, mas li Ponciá Vivencio
em dois dias, não parava de ler, queria ler muito mais, queria conhecer cada
personagem, talvez já conheça todos os personagens, talvez tenha ficado tão
encantada porque era dito por palavras cuidadosamente escolhidas, ligadas em
parágrafos, costurando a história que prende igual uma teia de aranha.
Ponciá Vivêncio, o nome mais repetido
durante todo o livro, tudo parece girar ao redor desse nome - o marido de
Ponciá Vivêncio, a mãe de Ponciá Vivêncio, o pai de Ponciá Vivêncio - o nome
que ela não gosta, que ela pede para não ser chamada, que ela não reconhece
como seu, como sendo da sua família, Ponciá sabe da origem deste nome, sabe da
história que carrega este sobrenome, uma história de dor, servidão, loucura e
resistência.
O sobrenome não é a única coisa que Ponciá
carrega de forma indesejada, existe uma herança do seu avô que foi dada a ela, mas
que ninguém comenta, pois todos têm medo. Ponciá se pergunta a todo momento
sobre essa tal herança, como leitora, eu também ficava intrigada, só aos poucos
fui reconhecendo o que era a herança e como ela se concretizaria na vida de
Ponciá, e também na vida de toda a família.
Conceição Evaristo é uma escritora que
engrandece a tradição oral, ou melhor dizendo a história oral, ela conta sobre
como isso a construiu como escritora e apresenta isso nas suas histórias de
forma grandiosa, contudo nesse livro ela destacou algo que pra mim foi
novidade, o poder do observar e da memória. A memória que Ponciá guardava de
seu avô, a partir das observações feitas no breve convívio que teve, além de também
existir o elo que conecta os corpos negros.
Essa ligação entre corpos negros fica evidente
quando é destacado o quanto a mãe de Ponciá perde de si quando os seus filhos
vão embora, principalmente Ponciá, pois desde antes do nascimento ela sabia que
Ponciá jamais seria sua, esta nasceu com destino pronto, mas a mãe de Ponciá
sente e muito essa perca. A filha era a única que ficava com ela, o filho
Luandi raramente estava presente em casa, assim como o pai, eles estavam sempre
trabalhando na terra dos brancos, Ponciá ao ser a única ao seu lado aprendeu a
manejar o barro e ficou até melhor que a mãe nessa arte.
Apesar destes elementos na história,
Conceição Evaristo não exclui o poder e força da oralidade, ela traz a figura
da Nêngua Kainda que é a materialização da sabedoria, a anciã a qual todos
recorrem para auxiliar nas escolhas que precisam ser tomadas, esta ao avançar da
idade passa a ver e saber muito mais, e assim todos os seus dizeres são sempre
trazidos a memória dos personagens, cada um de sua forma.
Ponciá foge para a cidade, nesse ato ela
desencadeia mudanças nas vidas tanto de seu irmão quanto de sua mãe, ao chegar
na cidade Ponciá não consegue fugir do destino igual de todo retirante negro,
torna-se empregada em casa de família, casa-se com um homem e espera, espera
sempre sentada em um banquinho com o olhar vago ao rememorar lembranças. O seu
irmão Luandi também vai para a cidade, já estando na cidade ele ganha nome na
história, mas não apenas o nome, assim como sua irmã, ele era Luandi José
Ponciá.
Eu sempre costumo reproduzir uma fala de Lélia
Gonzalez “Negro tem que ter nome e sobrenome”, hoje a leitura dessa fala tem um
significado e interpretação, no qual se faz necessário essa afirmação de quem
nós somos como pessoa negra em diáspora, mas para Ponciá que está na transição
dos tempos essa constante reafirmação do seu sobrenome tem outro tipo de
leitura.
O que quero dizer é que a partir de Ponciá
não teriam mais escravizados, não no significado literal da palavra, mas que os
negros continuariam em trabalhos e vidas subalternas. A transição que me refiro
e a do seu avô ter sido ex escravizado, de seu pai que apesar de nascido livre
ter vivido como escravizado, e ela que nasceu livre, e não esteve na terra dos
brancos trabalhando para servir.
Outro assunto de enorme importância é o
fato de Luandi querer e ter se tornado um soldado, durante este processo a
Nêngua Kainda foi essencial para a tomada de consciência pelo rapaz ao perceber
que este não era o poder que o libertaria, apenas estaria servindo ainda mais a
branquitude ajudando a manter em posição de inferioridade o seu próprio povo.
Posso resumir a experiência que tive nessa
leitura como impactante, foi rápida demais, produziu reflexões e inquietações
em pouco tempo de leitura, me fez agir rapidamente também, não foi a toa que
fiz logo dois trechos de livro, eu recomendo que sua experiência possa também
ser impactante, eu que já estava acostumada com a leitura de Conceição Evaristo
me surpreendi e reafirmo que foi maravilhosa a leitura de cada linha de Ponciá.
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