Olhos D´água - Contos da escrevivência
“É assim que Conceição
Evaristo inventa este mundo que existe. De Ana Davenga, Maria, Duzu-Querença,
Natalina, Salinda, Luamanda, Cida, Zaíta, Maíta. E desses meninos/ homens
perdidos, herdeiros de mães sem nome, herança que as mulheres deixaram e que
ninguém quis receber. São histórias duras de derrota, de morte, machucados. São
histórias que insistem em dizer o que tantos não querem dizer. O mundo que é
dito existe. Suas regras, explícitas. O lugar de mero ouvinte é desautorizado.
Nesta literatura/cultura, a palavra que é dita reivindica o corpo presente. O que
quer dizer ação. Conceição, Iyalodê, canta sua cantiga. Conta. Propaga o axé.
Aqui, convida-nos a cantar com ela. Fazer existir outro mundo. Eu agradeço.” (Jurema
Werneck – introdução)
Li Conceição Evaristo por
que em março de 2017 aconteceria um encontro especial, dois clubes de leitura estariam juntos em um mesmo encontro para falar da mesma escritora, da mesma
obra, o Leia Mulheres e Lendo Mulheres Negras. Uma das frequentadoras
do Leia Mulheres me informou sobre a escolha desta escritora e disse que me
informou porque sabia que eu iria gostar de participar do encontro pelo fato de
ser uma escritora negra. Procurei rapidamente o livro de Conceição na internet
e achei o PDF, foi a glória porque poderia ler e participar do encontro com a
consciência limpa kkkkk
O livro é composto por 15
contos, 15 histórias extremante fortes, que chegam para dizer o que ninguém quer
ouvir, o que é preferível esconder e fingir que não existe, já que não acontece
conosco não é mesmo? São 15 histórias que faz sangrar as personagens e quem está lendo, são histórias que expõe o sangue do genocídio do povo negro, o sangue
que o próprio povo negro limpa e que cobra por justiça e reparação. A
literatura de Conceição é uma denúncia, ela denuncia os que estão segurando a arma, os que mandam nos que estão segurando a arma e quem prefere não se envolver e ficar em
cima do muro.
Quando li o livro dois
contos me chamaram muito a atenção, O Cooper de Cida e Lumbiá.
Cida é uma personagem que
inúmeras mulheres ao ler o conto irão se identificar, Cida é aquela mulher da
tripla, quarta e quinta jornada, que sempre está fazendo tudo e nunca tem tempo pra
nada, que já se acostumou a estar com pressa e brigar constantemente contra o relógio
para lhe proporcionar mais tempo. Cida é aquela mulher que foi induzida a
esquecer que é mulher, apenas lembra que é uma trabalhadora, estudante, filha,
mãe, esposa, mas não consegue lembrar que antes de tudo isso ela é um ser, uma pessoa
única, um universo dentro de um corpo de mulher.
“Cida levou a mão ao
peito. Sentiu o coração e os seios. Lembrou-se então que era uma mulher e não
uma máquina desenfreada, louca, programada para corrercorrer.”
O sistema patriarcal
inventou a precoce maturidade da mulher e naturalizou que mulheres amadurecem
mais rápido que os homens, sendo assim, a mulher é sempre mais responsável e
muito mais exigida, estará sempre preparada e pronta para lidar com as
cobranças da 'vida'. Dessa fórmula esquecem de mencionar as reações
adversas, e óbvio que quem sofre com elas são exclusivamente as mulheres, que ao tentar dar
conta de tudo que lhe foi imposto acaba adoecendo, fisicamente, mentalmente e
espiritualmente.
“E só então falou
significativamente uma expressão que tantas vezes usara e escutara. Mas falou
tão baixinho, como se fosse um momento único de uma misteriosa e profunda
prece. Ela ia dar um tempo para ela.”
Existem estudos que já demonstram que as mulheres estão mais suscetíveis ao adoecimento mental devido a vida desgastante e de cobrança que se vive. Pra mi não precisaria de nenhum estudo pra afirmar algo que já sei e que também vivo, mas infelizmente a nossa sociedade só valida oque é cientifico, este que é feito por sua maioria homens e brancos. Deixarei nas referência um link de um estudo que mostra isto que falo.
Lumbiá é um menino pobre
que vende flores, gostava de vender as flores e aparentava fazer com uma
felicidade infantil, apesar de sua mãe preferir a venda de outro tipo de
mercadoria. Só tem uma coisa que lhe encantava mais, o Deus menino do natal, e
isso porque Lumbiá se identificava tanto com a imagem, ao ponto de se ver no próprio
Deus menino, a diferença era que um é branco e o outro negro. A diferença aumentou, pois um sempre nasceria no natal e o outro sempre morreria no natal.
“Gostava da família, da
pobreza de todos, parecia a sua. Da imagem-mulher que era a mãe, da
imagem-homem que era o pai. A casinha simples e a caminha de palha do
Deus-menino, pobre, só faltava ser negro como ele.”
Ao ler o conto de Lumbiá
me lembrei do romance de Jorge Amado, Capitães da Areia, nele também tinha um
menino, Pirulito, que se identificou tanto com a imagem do Deus menino que por
fim o roubou da loja que o vendia. Lumbiá e Pirulito tem muitos pontos em comum,
ambos meninos pobres, abandonados e deixados a margem pela sociedade encontram
conforto em uma imagem. Lumbiá não está ligado a nenhuma religião, ele simplesmente
se vê na imagem, não na história dela. Já Pirulito influenciado pelo padre (religião)
além de se ver na imagem também encontra algum conforto na história do menino da imagem.
“Lá estava o Deus-menino
de braços abertos. Nu, pobre, vazio e friorento como ele. Nem as luzes da loja,
nem as falsas estrelas conseguiam esconder a sua pobreza e solidão. Lumbiá
olhava. De braços abertos, o Deus-menino pedia por ele. Erê queria sair dali.
Estava nu, sentia frio. Lumbiá tocou na imagem, à sua semelhança. Deus-menino,
Deus menino! Tomou-a rapidamente em seus braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu
da loja levando o Deus-menino. O segurança voltou. Tentou agarrar Lumbiá. O
menino escorregou ágil, pulando na rua.”
A escrita de Conceição
Evaristo é tão forte que no livro Olhos D'água você já consegue sentir a partir do prefácio e introdução
escritos por Heloisa Toller Gomes e Jurema Werneck, respectivamente, que será
uma leitura que deixará muitas marcas. Em mim deixou uma enorme admiração da
escrevivência desta mulher e de como ela está por conseguir mexer nas
estruturas do meio literário tão padronizado e opressor.
REFERÊNCIA:
RAMADA, Karen et al. Saúde mental na atenção a mulher.
Disponível em:<http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/1066/pdf_237>
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